19 abril 2008

Entrevista a Alyn Ware
Deputados por um mundo sem armas nucleares

Recusando representar algum tipo de lobby e preferindo ser visto como um educador para a questão nuclear, Alyn Ware esteve em Lisboa pela primeira vez e conseguiu que dois deputados aderissem aos Parlamentares pela Não-Proliferação e Desarmamento Nuclear (PNND, em inglês). A organização reúne cerca de 500 associados, deputados em mais de 70 países, e não esquece de repetir que existem milhares de bombas nucleares prontas a serem usadas: só nos Estados Unidos se estima que sejam 250 mil ogivas. Alyn Ware é também um dos advogados que dirigiu o processo que levou à condenação do Estado francês pelo Tribunal de Justiça Internacional, em 1995, por causa dos testes nucleares no atol de Mururoa.

O que é que um país como Portugal pode fazer pelo desarmamento nuclear?
Portugal está numa posição significante porque é membro da NATO, que apoia o armazenamento nuclear preventivo. Por outro lado, todos os países da NATO, tal como a maior parte dos países no Mundo, fazem parte do Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares e do compromisso de trabalhar para um Mundo livre de armas nucleares. Portugal pode incentivar ao desarmamento.

Encontrou-se com vários deputados portugueses, que resultados produziram essas reuniões?
Tivemos reuniões positivas com alguns deputados. Reunimos com Leonor Coutinho, da Comissão de Negócios Estrangeiros, que aderiu à nossa organização. Pedro Quartim Graça, do Partido da Terra, eleito pelo PSD, também aderiu… E ainda reunimos com um assistente do Bloco de Esquerda, que assegurou que o partido vai participar nalgumas das nossas acções. Também reunimos com algumas organizações não governamentais, com quem estabelecemos relações de colaboração, incluindo o Conselho Português para a Paz e Cooperação, que há vários anos tem estado envolvido nestes assuntos.

E com José Lello?
O Sr. José Lello é o presidente da mesa da Assembleia da NATO e a NATO ainda tem a possibilidade terrível do uso de armas nucleares, recorrendo a armas norte-americanas, francesas, ou inglesas. Por isso é muito importante que a NATO avance nesse ponto e se afaste da confiança depositada nas armas nucleares. Levantámos essa questão ao Sr. José Lello, e a nossa organização vai levar a cabo um evento na próxima assembleia da NATO.

O que podem os deputados portugueses fazer se aderirem à organização?
Nós não requeremos nenhuma actividade específica por parte dos deputados. Temos um leque de opções a que eles podem voluntariamente aderir. Mas, por exemplo, já referi antes as armas nucleares tácticas que estão armazenadas na Europa em países da NATO… Alguns deputados noutros países como a Bélgica e Alemanha estão a adoptar resoluções para acabar com as armas tácticas norte-americanas e as russas. Talvez os deputados portugueses pudessem pegar nesse assunto. Outra possibilidade é uma proposta que está nas Nações Unidas com vista à negociação de um tratado internacional para abolir completamente as armas nucleares. Actualmente Portugal vota contra essa resolução. Isto é um aspecto fundamental para a nossa organização: convencer países que não apoiam essa resolução a apoiá-la quando for novamente a votação este ano.

Que países têm, actual e publicamente, armas nucleares?
Há cinco Estados nucleares, reconhecidos ao abrigo do Tratado de Não-Proliferação, que são os cinco membros permamentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas: Estados Unidos, Rússia, China, França e o Reino Unido. Além desses, Índia e Paquistão testaram armas nucleares em 1998, demonstrando que as têm. Acredita-se que Israel tenha armas nucleares e há mesmo provas disso. E a Coreia do Norte retirou-se do Tratado de Não-Proliferação e também testou uma arma nuclear.

Por isso, ao todo são nove os países que têm armas nucleares actualmente. Outros podem desenvolver armas nucleares num futuro próximo se tiverem urânio altamente enriquecido, ou se extraírem plutónio dos resíduos dos seus reactores nucleares. O Japão tem essa capacidade, o Brasil tem programas de enriquecimento de urânio, o Irão está a começar, a Holanda tem urânio enriquecido, e há mais alguns países que não têm nenhuma arma nuclear agora, mas podem tê-la no futuro.

O Irão não tem armas nucleares e reclama que o seu programa nuclear é apenas para fins energéticos… O Irão representa um perigo?
O Irão não tem, actualmente, urânio enriquecido, que é o que é necessário para construir uma bomba, mas pode enriquecê-lo a esse nível. De momento está sob supervisão da Agência Internacional de Energia Atómica, que está a verificar que não têm material capaz de ser utilizado em bombas, mas é uma possibilidade.

De todos os países que já visitou, onde encontrou maiores dificuldades em divulgar a causa e recolher apoio de deputados?
Claro que nos Estados Unidos há problemas com a actual Administração, que não atende às suas obrigações de desarmamento nuclear, embora isso esteja a mudar e nós temos tido desenvolvimentos positivos junto do Congresso, com várias resoluções acerca deste assunto. E esperamos que a nova Administração norte-americana dê alguns passos em frente. A Rússia tem sido muito difícil, mas temos, no entanto, alguns deputados que têm levado a cabo algumas iniciativas e no caso das armas tácticas pode haver alguns desenvolvimentos na Rússia. Depois há sempre as dificuldades da Índia e do Paquistão, que recentemente testaram armas nucleares e por isso estão mais relutantes em trabalhar pelo desarmamento nuclear do que no passado.

Estes são só alguns exemplos, eu acho que em todos os países há sempre pontos positivos e negativos. Mas também acho que o mais inspirador é a Zona Livre de Armas Nucleares, que já são 130 países que se comprometeram não só a não ser defendidos por armas nucleares, mas a proibi-las no seu território. E isso já é a maioria dos países no Mundo. E agora há ideias para uma Zona Livre também na Europa, por exemplo, e nisso Portugal pode pensar em aderir, se for para a frente. (fim)

RR em 16Abr2008. Áudio aqui.

18 abril 2008

Entrevista a James Nixey
Quem é Medvedev, o delfim de Putin?

Dmitry Medvedev é o novo presidente da Rússia, eleito com mais de 70 por cento dos votos. Com 42 anos este advogado e administrador da maior empresa russa, a Gazprom, é o mais novo líder russo e o sucessor escolhido por Vladimir Putin. Mas quem é o novo presidente russo e que desafios se lhe deparam? James Nixey, especialista em assuntos russos do Instituto Real de Relações Internacionais britânico, ajuda a traçar um cenário para a Rússia nos próximos quatro anos.

Quem é Dmitry Medvedev?
Dmitry Medvedev é o escolhido de Putin, o sucessor designado, o seu protegido. É o Presidente da Gazprom, a maior empresa russa, e é também vice primeiro-ministro. É um homem novo, advogado de formação. Não tem o passado do KGB de Putin, mas isso não significa necessariamente uma grande mudança. Vamos assistir a um acordo de continuidade entre Putin e Medvedev.

Continuidade parece ser a palavra-chave. O que devemos esperar de Medvedev na relação com o Ocidente?
Suspeito que o acordo entre Putin e Medvedev estabelece que não haverá mudanças radicais ou recuos de oito anos de putinismo. Portanto aquilo que veremos será uma retórica menos belicista do que a de Putin, que por vezes não consegue evitar fazer declarações agressivas anti-Ocidente. Isso não deverá ser o estilo de Medvedev, mas na substância a Rússia vai continuar a ser difícil de lidar para os países europeus e Estados Unidos.

Um dos assuntos mais delicados entre a Rússia e a Europa é a energia…
Ele [Medvedev] falou em liberalizar mercados e até agora o discurso sugere que vá ser menos propício a utilizar a energia russa como ferramenta política. Mas se não o fizer vai entrar em conflito com Putin, e isso é muito improvável. Portanto, suspeito que os problemas energéticos da Europa não vão desaparecer do dia para a noite porque mudou o nome de quem está no poder.

Em relação ao Kosovo, a Rússia reagiu com um apoio incondicional à Sérvia, pelo não reconhecimento. O Kosovo é importante para a Rússia?
Essa foi uma reacção emocional por parte dos russos. O Kosovo não é um lugar estrategicamente importante, mas os russos sentem-se traídos pelo Ocidente e vão continuar a reclamar. Dito isto, acho improvável — porque esta é uma situação que simplesmente perderam — que tentem esquecer por que isso os faz parecer fracos… Mas penso que o Kosovo é um assunto encerrado.

Rússia e Reino Unido têm tido vários incidentes diplomáticos. Como vê o caso Litvinenko, à luz deste novo presidente russo?
Esta é uma questão que o Governo britânico gostaria de esquecer, está muito ansioso para não irritar demasiado os russos. Mas ao mesmo tempo temos outros problemas nas relações entre Rússia e o Reino Unido. Não extraditámos certos exilados políticos que acolhemos em Londres, depois a situação com o British Council… Mas o caso Litvinenko/Lugovoi por si só não está a ser seguido de perto, porque é um embaraço para os dois países.

Ainda é cedo para falar nas relações futuras com os EUA, mas quem é que os russos preferem para a Casa Branca?
Medvedev já disse que vai trabalhar com quem quer que vá para a Casa Branca em Novembro, mas isso não é inteiramente convincente porque John McCain, o candidato líder dos Republicanos, tem posições muito mais agressivas face à Rússia do que os candidatos Democratas. Ele sugeriu, por exemplo, que a Rússia deveria deixar o G8 porque não é uma democracia… Penso que comentários desses não serão bem-vindos na Rússia e os russos esperam um democrata na Casa Branca. (fim)

RR em 03Mar2008. Áudio indisponível.

17 abril 2008

Entrevista a Norberto Andrade
O português que serviu Aleksander Litvinenko

Há mais de 25 anos que Norberto Andrade trabalha no bar do hotel Millenium Mayfair, em Londres. Em Novembro do ano passado não imaginou que acabaria por servir a Aleksander Litvinenko o gin tónico fatal, que deixaria o ex-agente do KGB a agonizar na cama de um hospital por contaminação com o agente radioactivo Polónio 210. Aos 67 anos este madeirense, a residir na capital inglesa há mais de 40, viu-se envolvido num caso de espionagem ao estilo da Guerra-Fria. Nunca as relações entre o número 10 de Downing Street e o Kremlin estiveram tão geladas. Andrei Lugovoi, principal suspeito, nunca foi extraditado.

Recorde-nos o que aconteceu naquele dia de Novembro do ano passado.
No primeiro de Novembro de 2006 o Sr. Litvinenko, o Sr. Lugovoi e outra pessoa sentaram-se numa mesa por volta das três e tal, até às cinco. Nesse dia havia muito movimento no bar e eu é que servi esses senhores, porque as mesas estavam todas completas. Servi chá japonês com mel e limão, depois três gin tónico, mais tarde pediram mais uma taça de champanhe mas a pessoa não quis o champanhe, e quis antes mais um gin. E quando eu estava a pôr o último gin na mesa, um outro homem levantou-se e eu não pude ver o que aconteceu nessa altura, está a perceber? E de repente o Sr. Lugovoi pediu a conta, assinou e foram-se embora. Eu também limpei a mesa, os copos, as chávenas, o bule do chá e pus tudo na máquina.

O Sr. Litvinenko ou o Sr. Lugovoi já tinham estado alguma vez lá no hotel?
Sim, o Sr. Lugovoi já estava no hotel há três ou quatro dias. (E o Sr. Litivinenko mora em Londres…) Mas aquelas pessoas não tinham nada de sinistro.

Quando é que se apercebeu do que tinha acontecido? Só quando o caso foi notícia?
Só duas semanas e meia depois, na terceira semana de Novembro, é que eu soube que o Sr. Litvinenko estava a morrer no hospital, porque a televisão e os jornais começaram a noticiar isso.

Na altura havia alguma coisa estranha nas chávenas ou nos bules?
Quando eu despejei o bule no lavatório notei que estava assim um pouco mais amarelo, o que não era normal, mas eu não liguei. Só no fim dessas três semanas, quando Litvinenko estava a morrer, é que a polícia e a agência de saúde fecharam o bar. E só depois de uma semana ou duas é que soubemos que também estávamos contaminados. Durante esse mês eu achava-me muito quente. Eu chegava ao trabalho e dentro de uma hora ficava muito quente e a roupa interior toda molhada. E no fim apanhei um género de irritação na garganta e no peito. E então a agência de saúde tomou conta de nós e de vez em quando faz-nos uma inspecção médica.

Ainda hoje continua a ser seguido pelos médicos ingleses por causa desse caso?

Sim. De momento estamos à espera, eu e os meus colegas, do resultado do último teste. E o bar vai reabrir agora todo reconstruído, no dia 5 de Novembro.

O bar sofreu obras por causa do caso com o Polónio 210?
Pois. Eles usaram radiação, um género de spray… E aquela mesa, as cadeiras, as paredes, a carpete, ficou tudo contaminado. E nós também ficámos contaminados. Éramos sete rapazes e raparigas a trabalhar no bar, e eu é que fiquei pior porque eu é que os servi e limpei a mesa.

Então, por precaução a administração do hotel decidiu fazer obras e remodelar o bar de novo…

Sim, porque para descobrir o que foi ou não foi levou muitos meses. Só nos últimos dois ou três meses é que o hotel pôde reconstruir o bar outra vez. Fechou desde Novembro (2006) até agora.

Na altura o senhor deve ter sido ouvido no âmbito de investigações, a polícia certamente quis falar consigo.

Eu tive várias conversas com a Scotland Yard, para ver se eu tinha visto qualquer coisa, ou para descobrir como é que aquilo aconteceu. Enquanto testemunha eu não posso falar muito disso, porque eu sou capaz de ser chamado, se por acaso for para tribunal. Porque eles estão à espera que a Rússia autorize o que o Sr. Lugovoi venha a Londres, para vir ao tribunal. Eu não posso dizer muito, porque está em curso a investigação. (fim)

RR em 05Nov2007. Áudio indisponível.

16 abril 2008

Porque encerrou definitivamente no dia 31 de Outubro de 2007 a maior sala de cinema do país, a Academia Almadense, deixo aqui a reportagem que fiz sobre o cinema em Maio de 2006, quando ameaçou fechar pela primeira vez.

Academia Almadense
O meu cinema já foi grande

A maior sala de cinema do país, e a última na cidade de Almada, está em risco de fechar. As dificuldades financeiras são muitas e os espectadores são poucos. Até o serviço de bar deixa de estar garantido já a partir do final do mês.

Quinta-feira é dia de estreia nacional. O filme é o mais recente episódio de “Missão Impossível”, e às três e meia da tarde, a primeira sessão do dia, estão apenas dez pessoas na sala da Academia Almadense. «Ontem, com o outro filme, fizemos matiné para uma pessoa sozinha. Isto assim não pode ser», comenta com desalento o senhor Lourenço, encarregado do pessoal e funcionário da Academia há 21 anos. «Este filme é bom. Vamos ver como se safa logo à noite e no fim-de-semana», diz com uma esperança ténue, enquanto olha a rua, encostado a uma das portas de vidro que deixam entrar a única luz que ilumina o amplo átrio do cinema. «Desligo as luzes uns dez minutos depois da hora, porque à tarde não vale a pena estar a gastar», explica.

Ao cimo de vários lanços de escadas abre-se a porta da cabine de projecção. António Dias, projeccionista da Academia há três anos, divide a sua atenção entre a vigia que deita para a sala de 830 lugares e por onde controla, curvado, a projecção do filme, e a vontade em falar dos meandros da «melhor profissão do mundo», que é a sua, há já três décadas. O ruído e o calor que estão na sala são produzidos pelo projector, um Victoria com lâmpada de 7500 watts, adquirido em 2003 e três vezes mais potente que o anterior. «Só com uma máquina assim é que se consegue aquela qualidade de imagem», esclarece, apoiado na máquina antiga, ainda ali ao lado. «Se isto acabar é uma pena. Ainda por cima com uma máquina nova, está a ver?»


A verificar-se o encerramento da Academia, o centro de Almada fica despovoado de cinemas, 14 anos depois do encerramento da sala da Incrível Almadense. Em 2003, com o centro comercial Almada Fórum, abriram 14 novas salas de cinema. Mas a verdade é que o centro comercial está bastante desviado da cidade, junto à auto-estrada A2, e dependente de deslocação em viatura própria ou autocarros específicos. O que são condições muito diferentes da Academia, situada numa das principais artérias de Almada, a rua Capitão Leitão. É lá que se concentra muito e variado comércio tradicional, a antiga igreja que alberga os Paços do Concelho, o antigo e desactivado hospital, cafés e restaurantes para múltiplos gostos, e os mais conhecidos bares, sempre com constante movimento de carros e pessoas.

À noite a rua ganha outro brilho, com os néons encarnados que realçam “Academia Cine-Teatro” e também as luzes coloridas que na fachada do cinema assinalam mais um aniversário da instituição, o 111º — a Academia Almadense é uma associação cultural e recreativa, e o cinema é apenas uma das suas valências, dispondo também de serviços de desporto e música (ver caixa). Mas, na sessão das 21h30 o cenário não era melhor: estavam vendidos cerca de 90 bilhetes.

Ao entrar na sala, a visão daquele volume amplo quase vazio impressiona, pelo que deve ser arrebatadora quando lotado. São 26 filas de cadeiras em couro verde-escuro, divididas em balcão e plateia, numa sala em forma de concha, e muito bem iluminada. Tudo está limpo e não há sinais de degradação, chão e paredes estão forrados a alcatifa castanha, e nos degraus brilham as letras de cada fila, de A a Z, em luz violeta. Das paredes relevam as diversas colunas de som, pequenas caixas negras, e concavidades acústicas. A tela branca, que se veste de tons vermelhos antes da sessão, mede uns módicos 19 metros de comprimento por sete de altura, e está emoldurada por duas filas de pesados cortinados. Porque construída originalmente para ser um cine-teatro, a sala tem um grande palco em meia-lua, de soalho igualmente verde, que invade a plateia até junto dos primeiros assentos e se estende por detrás da tela, e sob o qual existe um fosso de orquestra. Maior que a Academia Almadense só a primeira sala do ainda encerrado cinema S. Jorge, com mais 18 lugares, propriedade da Câmara Municipal de Lisboa, o que faz da sala almadense a maior do país de gestão privada.

«Não vem ninguém depois da hora»

«Antigamente éramos quatro arrumadores, mais um ou dois a cortar bilhetes». Agora são quatro rotativos, dois por semana, um na entrada e outro sozinho na sala, informa José Marreiros, reformado, arrumador de sala na Academia há 11 anos. A maior enchente de que se lembra foi o “Titanic”, que esteve 15 dias esgotado e mesmo depois de sair de cena as pessoas ainda vinham à procura de bilhete, conta, enquanto separa pelo picotado os talões dos bilhetes já cortados. Depois disso, só filmes como os da série “O Senhor dos Anéis”, o primeiro episódio da trilogia “Matrix” e um outro de “A Guerra das Estrelas” provocaram enchentes.

Com a redução de pessoal e dos espectadores somente uma das cinco portas de acesso à sala está em funcionamento, o que é motivo de lamento para o senhor Marreiros. «Antes indicávamos às pessoas o caminho mais próximo, “ao cimo à esquerda, ao cimo à direita”» e agora «quem tem lugar mais à esquerda entra pela mesma porta e tem que andar aquilo tudo», explica com um profissionalismo encantador, que vai muito além da farda, uma camisa de riscas encarnadas e o colete de algodão azul escuro, onde ao peito está o brasão da casa. Se a Academia fechar «fico triste, pois claro», não tanto por perder o trabalho, dado que «isto é mais uma entretenha» e que não são os sete euros que ganha por sessão que fazem grande diferença. Quando lhe peço para ver a lanterna prateada, dispara: «e tínhamos que alumiar o caminho aos espectadores atrasados, quando agora não vem ninguém depois da hora».


Talvez mais gente se sentisse atraída pelo cinema se lá pudesse encontrar todas as semanas daquelas estreias sobejamente divulgadas e aguardadas. Contudo, isso nem sempre é possível. «Só os filmes com mais de 35 cópias é que chegam à Academia, porque as distribuidoras privilegiam as suas salas», explica Arménio Silva, responsável de programação da Academia desde a sua abertura, acerca das fitas com a etiqueta da Lusomundo. De potenciais grandes êxitos como “Missão Impossível” ou “O Código Da Vinci” chegam a Portugal entre 60 e 80 cópias, «e esses conseguimos agarrar». Quanto a outros filmes, simplesmente «respondem-nos que não há cópias para a Academia», o que se tem verificado com maior frequência desde a abertura do Almada Fórum.

Mesmo que o cinema continue a laborar, a partir do final do mês não está assegurado o serviço de bar. Ao fim de 12 anos a explorar o espaço e a manter o bengaleiro da Academia, Afonso Miranda já comunicou à Direcção a vontade de extinguir o contrato de concessão. O abandono deve-se a uma «reorganização interna do negócio», explica, referindo-se ao café de que é proprietário, há 25 anos, e que fica do outro lado da rua. Com menos funcionários Afonso Miranda tem que dar mais atenção ao seu negócio principal, não negando, porém, por detrás do ruído do moinho de café, que as receitas do bar também «já não são o que eram».

A pedido de memórias, recorda com um sorriso que em dias de lotação esgotada, ou mesmo com mais de 500 espectadores, abriam os dois bares, referindo-se a um segundo espaço, no topo e à direita da escadaria do átrio de entrada — as sessões da Academia têm intervalo. Ou lembra ainda a introdução das pipocas no cinema, quando tomou em mãos o bar, e de quanto essa novidade incomodou o encarregado da sala.

José Amorim, de 54 anos, escolheu a Academia Almadense para ver a estreia de “Missão Impossível”, em família. Porquê? Precisamente porque ali não encontra a confusão de outros sítios nas estreias, mas também porque o bilhete é mais barato. O Almada Fórum, diz, é cómodo pelo estacionamento fácil e gratuito, pela variedade de filmes que oferece e por tudo o resto extra-cinema. «A nossa filha mais nova está lá, a ver o mesmo filme, com os amigos», revela.

Andreia e Guilherme, ela psicóloga e ele engenheiro civil, ambos a caminho dos 30 anos de idade, escolheram a Academia «pela tradição», pelo preço reduzido dos bilhetes — 2,50 euros contra mais de cinco na generalidade dos cinemas — e para não correr o risco de encontrar a lotação esgotada. Por seu turno, Jorge, 29 anos, e Sónia, de 28, salientam a qualidade da sala e a existência de intervalo. Já Manuel e Elsa, de 30 e 25 anos, explicam que pesou na decisão o facto de residirem nas imediações, o preço baixo e a qualidade de som e imagem da sala.

De facto, desde a sua abertura, há 32 anos, foram realizadas várias intervenções e melhoramentos na sala da Academia, para a manter sempre actualizada. Na década de 90 substituíram-se as cadeiras e alcatifas, melhoraram-se as condições acústicas e introduziu-se o som Dolby Digital Surround, marca de pioneirismo do cinema na altura, além de um novo ecrã. Isto sem esquecer o último investimento, com o actual projector, uma despesa que rondou os 60 mil euros, realizada já numa altura de quebra financeira. Mas a noite de quinta-feira continuava muito tímida.

Prejuízos nos últimos seis anos

«O máximo agora são 200 pessoas», diz a bilheteira Maria Luísa, de 62 anos e há 43 na Academia — é das funcionárias mais antigas. «Não adianta baixar o preço dos bilhetes», afiança, um mês depois da decisão da Direcção em reduzir os ingressos de 3,80 para 2,50 euros durante a semana, mantendo-se o preço ao sábado, domingo e feriados. É certo que os filmes anteriores não foram do estilo desta estreia nacional, mas Luísa garante que muitos dos frequentadores do cinema são residentes nas proximidades, ou os miúdos que não têm carro para se deslocar ao centro comercial. «Dantes, nas estreias, formavam-se filas enormes que iam até à esquina» do edifício, comenta, depois de interromper o tricot para vender bilhete a um espectador tardio. «Este não é de cá, perguntou se ainda havia bilhetes», graceja.


Osvaldo Azinheira não pode partilhar a boa disposição, mesmo que momentânea. Para o Presidente cessante da Direcção da Academia Almadense a realidade é dura e muito triste. «Temos vindo a adiar, desde há anos, o encerramento do cinema», confessa. Na sua opinião são vários os responsáveis pelo decréscimo de espectadores do cinema, mas sobretudo a falta de estacionamento nas proximidades e a supressão, no passado, de duas carreiras de autocarros que passam naquela rua, para Cacilhas, depois das 21 horas. Por fim, as outras condicionantes são comuns à crise geral do cinema: a TV por cabo, a internet, o DVD e «a grande diminuição do poder de compra das pessoas».

Pelo menos desde 1999 que o cinema não apresenta um exercício positivo. E os números são bastante elucidativos das dificuldades que a Academia atravessa: se em 2001 as receitas do cinema foram de 391 mil euros, com despesas um pouco superiores, em 2003 apenas entraram nos cofres cerca de 129 mil euros (saíram 244 mil), sendo que em 2004 o valor não chegou aos 102 mil euros (com despesas de mais do dobro). Ou seja, em três anos registou-se uma quebra das receitas superior a 74 por cento — não foram disponibilizados dados referentes a número de espectadores. «São as piscinas que evitam a derrocada total» da Academia, afirma resignado, enquanto o cinema sempre tinha sido a principal fonte de receita da instituição.

«Tenho a consciência de que vou passar o testemunho de um barco a afundar», desabafa, claramente emocionado, de olhar evasivo por detrás dos óculos, e ajeitando a gravata. Azinheira, de 72 anos e assessor da presidência da autarquia, vem sendo sucessivamente eleito Presidente da Direcção há um quarto de século, mas assume-se algo cansado e desgastado. Conforta-o saber que quem lhe sucederá é um homem da casa há tantos ou mais anos que ele, que conhece os problemas e é de sua inteira confiança — é, aliás, o seu Vice-Presidente, que agora encabeçou a única lista apresentada a sufrágio.

É, então, nas mãos de Domingos Torgal, professor do primeiro ciclo reformado e profundamente ligado e activo no associativismo almadense, que reside o futuro do cinema da Academia. Para já, o que pretende fazer é «ouvir os jovens, chamá-los a dar a sua opinião sobre o que se deve fazer para dinamizar o cinema e a sala». Na sua opinião, a principal pecha da Academia são os problemas de estacionamento. E pelo menos uma solução existe. É que o edifício do cinema foi construído com estacionamento subterrâneo. Apenas essa cave alberga, desde 1976, as actividades desportivas da Academia. «Eu gostava de poder devolver a garagem à garagem», diz, «porque ainda cabem lá umas 60 ou 70 viaturas». Mas isso depende da construção de um pavilhão gimno-desportivo para a Academia, em terrenos a disponibilizar pela autarquia, algo ainda dependente de projecto e que num curto prazo não passa de um desejo. «E a Academia também não tem esse dinheiro, diga-se».

De cabelo e bigode brancos, divertido ao longo da conversa, o professor Torgal não evita que o rosto se lhe feche perante a questão, a que responde, com séria inevitabilidade: se a crise subsistir «não ponho de parte a hipótese de fechar o cinema».

Um problema sem solução

O problema da falta de público na Academia Almadense não parece ter resolução possível. A crise do cinema é geral, como atestam os dados do Instituto do Cinema Audiovisual e Multimédia: em 2005 os cinemas nacionais perderam quase um milhão e 400 mil espectadores (menos 8,1 por cento), face ao ano passado. E para as salas únicas e de elevada capacidade, como é o caso, não há forma de responder à crescente oferta de fitas, pois a escolha é só uma. Em bom rigor, nos dias de hoje uma sessão com mais de 150 espectadores é um óptimo resultado para a generalidade dos cinemas, cujas lotações não vão muito mais além. Apenas quando se tem 830 cadeiras para preencher e as dimensões e custos que lhes estão associados, obviamente esse número não chega.


Também os hábitos de consumo dos portugueses se modificaram e os centros comerciais se afirmaram, oferecendo uma multifuncionalidade sem paralelo: convívio, compras, comida e cinema, tudo no mesmo espaço. Concretamente, o centro comercial Almada Fórum impôs-se não só pela novidade — o primeiro e único do género no concelho —, mas por toda uma reconfiguração de hábitos que proporcionou, a que serve de exemplo a deslocação (e expansão) do único hipermercado da cidade para a nova infra-estrutura. E não pode ser ignorado o facto de o estacionamento ser gratuito.

Por fim, transformar o cinema da Academia numa sala multiusos, uma das soluções de rentabilização do espaço, não é tão fácil quanto aparenta. É que ao cancelar uma sessão para acolher, por exemplo, um espectáculo musical, o cinema não só tem que cumprir as obrigações negociais para com a distribuidora, como pode estar a contribuir para que esta privilegie com cópia outra sala concorrente na próxima estreia.

Apesar do cenário pouco optimista verificado com “Missão Impossível”, o próximo filme a estrear na Academia é “O Código Da Vinci” e as expectativas do cinema numa boa receita são elevadas. De tal forma que o filme ficará duas semanas em exibição. Depois, e com a chegada do calor, tudo é uma incógnita.

Em Agosto do ano passado a Academia Almadense fechou as portas pela primeira vez na sua história. Este Verão, e na ressaca do campeonato mundial de futebol, teme-se que, a encerrar de novo, seja por tempo indeterminado. Que as fitas não voltem a passar, que não haja mais espectadores boquiabertos pelo gigantismo da imagem, que não mais se salte assustado pelo som daquela bala que passou rasando a cabeça. Porque um cinema fechado só se pode deteriorar e acaba por se esquecer. E as memórias não alimentam cinéfilos. (fim) (texto e fotos, Maio 2006)

Trabalho não publicado.