08 maio 2008

Entrevista a João Bernardo
O Maio de 68 decapitou a esquerda

É João Bernardo quem o afirma e assegura que ainda hoje a esquerda procura as estruturas que perdeu, «mundialmente». Intelectual de extrema-esquerda e anti-capitalista, é crítico do comunismo soviético, que qualifica de capitalismo de estado. Considera que se deve aos imigrantes e aos retornados a Portugal o maior choque moral do final do salazarismo, mas não viveu a contestação estudantil de 1969 porque entretanto se exilou, depois de ter sido expulso do ensino universitário português durante oito anos. Militou no PCP e no Comité Marxista-Leninista Português — fundado por Francisco Martins Rodrigues, recentemente falecido —, e depois de expulso criou os Comités Comunistas Revolucionários Marxistas-Leninistas. Vive no Brasil há 11 anos e há duas décadas que lá lecciona em várias universidades públicas, Economia da Educação, História Económica e Política. Conversou connosco numa recente passagem por Lisboa, para uma conferência sobre o Maio de 68 no Instituto Franco-Português.

O João Bernardo diz que o Maio de 68 deixou a esquerda sem as estruturas que tinha antes…
Os partidos comunistas posicionaram-se contra o Maio de 68, em França, e os seus equivalentes noutros países. Até então, os partidos comunistas tinham hegemonizado a extrema-esquerda. Claro que havia outros grupos à esquerda dos partidos comunistas, mas eram extremamente minoritários, eram grupos sem significado. Na sequência do Maio de 68 os partidos comunistas viraram-se contra aquilo que era a posição mais activa da classe trabalhadora, que não era a dos estudantes, e perderam a sua razão de ser.

Em França, eu lembro-me que, pouco depois de Maio, quando De Gaulle faz as eleições legislativas a seguir a Maio de 68, o partido comunista francês conduz a sua campanha eleitoral com o lema de que “nós somos o primeiro partido em França a denunciar o esquerdismo”. Portanto, vai apresentar-se como um partido da ordem. Mas quem vota na ordem vai votar na direita clássica, e quem quer o anti-capitalismo via-se sem os seus partidos tradicionais. É isso que nós hoje ainda estamos a atravessar, mundialmente.

A esquerda ficou irreparavelmente decapitada pelo processo de Maio de 68?
Em Portugal, em 1974, depois do 25 de Abril, o Partido Comunista Português tornou-se um partido anti-greves. Quando os CTT fizeram greve, pouco depois do 25 de Abril, os militares ligados ao PCP e os ministérios também ligados ao partido mandaram as tropas substituir os grevistas. Houve dois oficiais milicianos que se recusaram, Anjos e Marvão. Foram presos. Nas primeiras grandes manifestações: “Anjos e Marvão, libertação”.

De dentro do Governo, o PCP fazia um ataque sistemático às greves. Mais dissimulado, porque [o PCP] não aparecia explicitamente, mas por trás do Governo ou por trás de regimentos militares que controlava. Eu acho que isso tudo somado teve um efeito positivo, apesar de tudo. Não foi tão mau como à primeira vista uma pessoa de extrema-esquerda e anti-capitalista, como eu sou, poderia pensar. Limpou terreno. O problema é que uma extrema-esquerda anti-capitalista está a demorar muito tempo até reconstruir um outro terreno.

Esteve durante oito anos impedido de frequentar todas as universidades portuguesas?...
Sim, gabo-me, sem dúvida, de ter sido o estudante com mais expulsões durante o tempo do fascismo. A seguir eram dois colegas com quatro anos de expulsão, se não me engano, e eu fui expulso por oito anos das universidades portuguesas.

Por que motivos?
Era uma lista muito longa. Fui expulso em 1965, quando houve um pouco mais de 200 estudantes sancionados. Nem todos foram expulsos, uns estiveram suspensos. No meu caso, houve outras coisas que agravaram, como acusação de agressão física ao reitor e a dois funcionários. Depois estive envolvido no roubo do próprio processo disciplinar de dentro do tribunal. Essas coisas estão relatadas num livro chamado “Primeiros Planos”, feito por três antigos jornalistas, que relata o movimento estudantil desde 62 até 74.

Os ecos do Maio de 68 francês em Portugal são a contestação estudantil de 69?
Isso é o que o Fernando Rosas apresentou e me parece perfeitamente claro. Eu nessa altura já não estava no movimento estudantil e já nem estava em Portugal, estava emigrado. Mas concordo inteiramente com essa periodização, embora já surjam raízes disso nas lutas de 1965. Depois há a questão das inundações e da ida dos estudantes para as zonas inundadas, em Novembro de 1967… Mas, sim, acho que é, sem dúvida, 1969.

Em França os estudantes incorporaram a luta dos trabalhadores, estavam com os trabalhadores. Em Portugal o movimento estudantil também foi assim?
Até 1967 o PCP foi hegemónico no movimento estudantil. Bizarramente, ou não, o PCP fazia uma divisão muito grande, e entre estudantes e trabalhadores não havia contactos. E essa problemática dos trabalhadores dentro do movimento estudantil vai ser trazida não pelo partido comunista, mas pelos variados grupos esquerdistas, à esquerda do PCP.

Quando os militares fizeram o 25 de Abril, a primeira Junta de Salvação Nacional não pretendia destruir o aparelho administrativo salazarista. Esse aparelho ruiu: os presidentes de câmara e toda essa gente fugiu. O Salazar tinha dito “os comunistas matam toda a gente”, e os homens deviam acreditar piamente nisso e então fugiram, debandaram, não havia estruturas administrativas. As pessoas dirigiam-se à Junta de Salvação Nacional, em Belém, para resolver os mais variados assuntos, e os militares não sabiam resolver esses assuntos. No geral eles não sabem resolver nada. Então delegavam nos oficiais milicianos, que eram mandados aqui e acolá para resolver in loco os assuntos.

Quem eram os oficiais milicianos? Eram estudantes que tinham acabado de se licenciar e tinham saído da universidade com uma enorme contestação, o que lhes abriu os olhos para os problemas da população. Esse foi um dos factores de mais rápida radicalização depois do 25 de Abril, e é aí que as coisas escapam à Junta de Salvação Nacional, porque ela por si não pode resolver os problemas e os únicos que o podem fazer são os milicianos, formados pelo movimento estudantil. Os oficiais de quadro, a meu ver, são ineptos para tudo, a não ser talvez para as coisas militares. Aí tem um efeito directo do movimento estudantil português na vida política mais lata.

Uma outra intervenção dizia que com o Maio de 68 em França os imigrantes se tornaram sujeitos políticos. Concorda?
Sim. Durante a guerra da Argélia e entre os imigrantes argelinos, aqueles que não eram sujeitos políticos a polícia obrigava-os a ser…

E em Portugal é depois de 1974, depois do fim da guerra do Ultramar?
Não. Repare que muitas das pessoas que emigravam para França davam o salto antes, eram refractários. Nas incorporações finais para a guerra colonial chegou a faltar, em certas casos, metade dos incorporados… Quem é que ia fazer quatro anos de guerra colonial para emigrar depois? Eu tenho uma certa dificuldade com essa categoria dos sujeitos políticos: como é que eu vou avaliar se uma pessoa é consciente ou não? Isso é Deus que sabe… Posso ver é a realidade prática, o que fazem…

Eu encontrei documentação sobre fábricas, se não me engano era o caso da Citroen, em que a maioria dos trabalhadores aceitou, no período da Greve Geral, em Junho, as propostas patronais, e um núcleo duro resistiu a aceitar. Esse núcleo duro era constituído só pelos imigrantes da fábrica, portugueses, marroquinos, espanhóis, jugoslavos, quando aparentemente, pela lógica das lutas operárias, devia ser o contrário, porque o imigrante não tem respaldo jurídico e em princípio tem mais medo de lutar. Mas a pessoa depara-se com factos assim…

A emigração portuguesa tinha problemas muito difíceis de trabalhar, politicamente, porque grande parte dos que emigravam eram camponeses. Tradicionalmente migra-se do campo para a cidade, só que a cidade ali era Paris. É preciso não esquecer que Paris era a segunda cidade portuguesa, havia mais portugueses ali do que no Porto. Portanto, havia pessoas que iam directamente dos confins de Trás-os-Montes para Paris, um universo completamente diferente. Vai-se dizer que essas pessoas não eram sujeitos políticos ou que eram despolitizados? Não. Só que estavam num mundo que não compreendiam, ou que demoravam tempo a compreender. E quanto menos compreendiam mais viviam nas suas comunidades, mais viviam fechados com as famílias, e por isso a relação com o mundo exterior era demorada.

Que se deve aos imigrantes e aos retornados a Portugal o maior choque moral que houve no final do salazarismo e no pós-salazarismo, disso estou perfeitamente convencido. Foram eles que alteraram os comportamentos da sociedade portuguesa. Deixaram de ser respeitosos, submissos, passaram a ter uma certa arrogância, vieram com aquelas ideias que tinham assumido numa outra sociedade, e não numa sociedade beata e fechada que você, felizmente, não conheceu e que não pode mesmo imaginar até que ponto o era.

Terá sido isso fundamental para o que se passou no 25 de Abril?
Eu não sei se foi fundamental para o que se passou no 25 de Abril, mas para a evolução cultural posterior a 25 de Abril, acho que sim. Aqueles que regressaram tiveram um papel muito importante. Porque, repare, aqueles que eram os nossos políticos eram sobretudo urbanos, e esses emigrantes eram rurais, das pequenas terrinhas. A vinda a férias dos emigrantes e dos filhos dos emigrantes, das meninas e meninos de 18 anos, 16 e 15, que tinham chegado a essa idade em França e que iam ver os primos em Portugal: pode imaginar o choque que isso ia criar numa terriola? Com comportamentos completamente diferentes, criavam um fascínio, uma vontade de imitação, e por isso estou convencido que isso teve um efeito muito grande onde os activistas políticos menos conseguiam atingir, precisamente nas partes rurais e periféricas, e por fim nas grandes cidades.

Enquanto alguém assumidamente de extrema-esquerda, como acha que a Igreja terá olhado para o movimento estudantil português?
A Igreja era um pilar do regime, mas havia pessoas da Igreja que romperam com ela. Em Portugal menos do que noutros países, mas enfim. Estou a lembrar-me do Felicidade Alves, por exemplo, prior de Belém, uma paróquia frequentada pelo Presidente da República e por vários ministros que moravam ali em Belém, e que assumiu posições corajosas. Mas não foi uma corrente significativa. A Igreja em Portugal foi sempre uma força moralmente conservadora; francamente, a meu ver, obscurantista, enquanto que em países como o Brasil a Igreja foi um dos elementos mais activos para o fim da ditadura militar. (fim)

Trabalho não publicado.

3 comentários:

João Martins Abrantes disse...

Meu caro! É com enorme satisfação que vejo o teu empenho na profissão de jornalismo, e o prazer que isso te dá! Desejo te as maiores felicidades a ti e ao teu novo blog, esperando que não deixes AQUINTAORDEM cair no esquecimento e que contribuas com as tuas opiniões.
Grande abraço
João Martins Abrantes

Unknown disse...

Muita coisa vou aprender neste blog!

Ricardo Tomé disse...

grande joao, irei visitar o teu blog regularmente. nao apenas por abordar temas interessantes e que me sao uteis, mas tambem pela qualidade da escrita, um aspecto que eu muito privilegio e que tu, ja to disse anteriormente, fazes muito bem.

ja agora deixo-te o meu blog também, para o caso de te quereres rir...ou chorar. cuidado, poderas perder a vontade de viver ao ler o que eu escrevo lá.

http://teoriasdotome.blogspot.com

esperando que esteja tudo bem contigo, desejo-te felicidades e um grande abraço do colega Ricardo Tomé